terça-feira, 22 de outubro de 2013

A GRANDE LIÇÃO - PAULO FREIRE

"Um momento solene e importante ocorreu durante uma jornada de falas em que discutia a questão da autoridade, da liberdade, do castigo e do prêmio em educação. Ocorreu exatamente no centro social do SESI Presidente Dutra, em Vasco da Gama, Recife.
Baseando-me num excelente estudo de Piaget sobre o código moral da criança, sua representação mental do castigo, a proporção entre a provável causa do castigo e este, falei longamente citando o próprio Piaget sobre o assunto defendendo uma relação dialógica, amorosa, entre pais, mães, filhos, que fosse substituindo o uso dos castigos violentos.
Meu erro não estava em citar Piaget. Meu erro estava primeiro, no uso de minha linguagem, de minha sintaxe, sem um esforço maior de aproximação dela à dos presentes. Segundo, na quase desatenção à realidade dura da imensa audiência que tinha em frente a mim.

Ao terminar, UM HOMEM PEDIU A PALAVRA E ME DEU TALVEZ A MAIS CONTUNDENTE LIÇÃO QUE JÁ RECEBI EM MINHA VIDA DE EDUCADOR! Pediu a palavra e FEZ UM DISCURSO QUE JAMAIS PUDE ESQUECER E QUE EXERCEU SOBRE MIM ENORME INFLUÊNCIA.
‘Acabamos de escutar’, começou ele, ‘uma das palavras bonitas do Dr. Paulo Freire. Umas até simples, que a gente entende fácil. Outras mais complicadas, mas deu pra entender as coisas mais importantes que elas todas juntas dizem. ’
‘Agora eu queria dizer umas coisas ao doutor que acho que meus companheiros concordam.’
Fitou-me manso, mas penetrantemente, e perguntou: ‘dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de cada um de nós?’ começou então a descrever a geografia precária de suas casas. A escassez de cômodos, os limites ínfimos dos espaços em que os corpos se acotovelam. Falou da falta de recursos para as mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor. Da proibição que lhes era imposta de ser felizes. De ter esperança.
Acompanhando seu discurso eu adivinhava os passos seguintes, sentado com se estivesse, na verdade, me afundando na cadeira, que ia virando, na necessidade de minha imaginação e do desejo de meu corpo em fuga, um buraco para me esconder. 
- Doutor nunca fui à sua casa, mas vou dizer ao senhor como ela é. Quantos filhos tem?
- Cinco. Disse eu, mais afundado ainda na cadeira. - Três meninas e dois meninos.
- Pois bem, doutor, sua casa deve ser uma casa solta no terreno, deve ter um quarto só para o senhor e sua mulher. Outro quarto grande, é pras três meninas. Tem outro quarto para os dois meninos. Banheiro com água quente. Cozinha com a linha arno. O senhor deve ter ainda um quarto onde bota os livros, sua livraria de estudo. Agora, veja, doutor, a diferença. Uma coisa é chegar em casa, mesmo cansado, e encontrar as crianças tomadas banho, vestidinhas, limpas, sem fome e a outra é encontrar os meninos sujos, com fome. E agente tendo que acordar às quatro da manhã do outro dia para começar tudo de novo, na dor, na tristeza, na falta de esperança. Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites não é porque a gente não os ame não. É porque a dureza da vida não deixa muito pra escolher’.
Esse discurso, jamais esqueci. Nas indas e vindas da fala, na sintaxe operária, nos movimentos do corpo, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador, ali em frente, sentado, calado, se afundando em sua cadeira, para a necessidade de que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão do mundo que o povo esteja tendo.” 

Autor: Paulo Freire